quarta-feira, 30 de abril de 2014

Das incongruências da vida

Já era um senhor. Ao menos aparentava ser. Caminhando, cabeça baixa encoberta pelo boné que não escondia as marcas do sol. Devia ter 60 anos, se o trabalho diário na terra não o envelheceu precocemente. Procurava um caminho, parecia desnorteado.

- Onde fica a avenida principal? – me interrompeu se apressando em emendar o boa tarde esquecido. Estávamos em Petrolina, algumas dezenas de avenidas principais.

- Aquela que dá pra Lagoa Grande – completou entendendo minha confusão.

- Senhor, é um pouco longe daqui.

- Disseram que eu tinha que andar uns 20 quilômetros. Sabe onde fica a Serra da Santa? Depois de lá um pouco. Preciso avisar a pai a morte de minha “véa” – a cabeça baixou-se ainda mais, pingando lágrimas de um choro desavergonhado.

- 92 anos, foi atropelada – a voz embargada parecia pedir um abraço, queria desabafar a tristeza aprisionada pela falta de recursos. Não podia apenas chorar “sua véa”.

- O dinheiro que tinha paguei um aviso no rádio. Mas pai não ouviu, não apareceu até agora. Então eu disse, fique aí minha irmã, que eu vou caminhando. Devo chegar lá umas oito horas da noite. Tentei uma van pra Lagoa Grande, disse que pagava quando chegasse no projeto, mas não deixaram – baixou novamente a cabeça. Lamentava a falta de confiança.

- Pai tem que saber – chorava, o coração nos olhos vermelhos.


Não sei quem era o senhor, a senhora morta ou ao menos se “pai” soube. Não sei de que localidade do interior de Juazeiro tinha saído apressado para tentar levar uma notícia desagradável. Não sei se ele conseguiu chegar ao projeto de irrigação próximo a Serra da Santa, na BR 428, zona rural de Petrolina. Mas sua tristeza ficou ali parada, mesmo depois de que partiu, tentando achar explicações para tantos descaminhos da vida. 

sexta-feira, 25 de abril de 2014

A caixa (Parte II)

Há vidas que nascem poesia. E aquelas que nem estrofe encontram para se encaixar.

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Andei apressada, a caixa nas mãos latejando os pensamentos. A velha conhecida ruazinha de todo dia não parecia a mesma. Nunca percebera os matos que cresciam desordenadamente em sua encosta ou o fio solto do poste que pendia perigoso. As árvores grandes demais e cheias demais com sua agitação incomum pareciam querer me acompanhar, com toda sua inquietude tempestuosa. As pessoas passavam despercebidas do mundo que se construía ali, no mesmo lugar de sempre.

Mergulhei na vida de outra pessoa. Alguém que esperava uma resposta ou tentava dizer. Palavras que desejamos ouvir, mas nunca são ditas, que nos traem em nossa pressa pelo amanhã que não vem, porque não o compreendemos, porque não permitimos que ele chegue. Ali era silêncio, apesar das inúmeras páginas escritas. Era uma só voz, que terminou esquecida em um meio de rua qualquer.

A caixa trazia dezenas de papeis, ordenados não sei ainda se sob alguma lógica. Fragmentos de uma vida, costurada entre sentimentos que se esparramavam sem pudor sobre as folhas amarrotadas. Quem os teria derramado dessa forma?

“Foi, como costumam dizer, à primeira vista. Olhar compenetrado, ar de quem sabe o suficiente para não esnobar quem lhe cerca. Apenas primeiras impressões. Até então não entendia como coisas assim podiam acontecer. Como podia enxergar o outro sem nunca ao menos tê-lo visto antes. Assim de repente, sem qualquer precedente.

E lá estava, frente a frente a observar. Sorriso de quem se prepara para ir além. Sorriso fácil, sincero. Horas a observar cada trejeito. Pequenos movimentos, palavras. A voz entoando a melodia antiga, tão familiar. Quis estar ali para sempre, ao lado, mãos dadas, braço sobre os ombros cansados, em êxtase. Quis estar ali, mas se percebeu a voltar. A saudade antecipando o tempo.

Tentou compreender o que se passava, compreender os gestos bruscos, a cabeça baixa como a esperar. Mão impaciente a passear de um lado para o outro. Mãos inquietas tentando controlar o nervosismo. Olhava para o lado. Olhar de quem pergunta, de quem diz por que, sem esperar resposta. Fez do momento seu, porque o sabia seu”.

O trecho iniciava com mistério a história que se desenhava bela. Ou triste.  

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Quanto vale seu real?



Quem em sua rotina pagaria R$ 7,30 em uma lata de refrigerante? Ou R$ 12,40 em um pão de hambúrguer (isso mesmo, só o pão, só um pão)? A Páscoa chamava para a comilança de chocolates, cuja caixa, que normalmente é vendida a R$ 6, estava sendo oferecida, na promoção, vale ressaltar, pela bagatela de R$ 21.

Essa é a realidade de quem tem que esperar por voos nos aeroportos brasileiros. Os preços abusivos são comuns na maioria deles. Sem opções, o usuário, que já é lesado de tantas outras formas, é obrigado a escolher entre ficar com fome ou pagar o que lhe é cobrado.

Eu não fiquei com fome.

- Presunto ou pizza? – perguntou a atendente de um café, visivelmente enfadonha com o ambiente, com o trabalho. Dava para ver que ela não queria estar ali.

Eu tinha escolhido um folhado, por R$ 8,40, não maior que a pequena palma de minha mão. Parecia bom pelo vidro que vaporizava no calor-frio do lugar.

- Presunto ou pizza? – repetiu, mecanicamente ante minha indecisão ao imenso leque de opções. A atendente queria ir embora. A agonia dela estava me agoniando.

- Presunto mesmo. Não... pizza.

- É tudo a mesma coisa, mulher. Tudo caro. Eu que não como um treco caro desse, porque eu sei que não vale. Quando eu como aqui é porque me dão de graça – A declaração dela me paralisou, mão estendida esperando o salgado. Ela sorriu de canto de boca como se pensasse “me vinguei por um segundo”.

Ela sabia que não valia, e eu também. Todos nós sabemos, mas continuamos perpetuando o sistema, que parece piorar dia após dia. Ela trabalhando, talvez única fonte de renda, talvez só um complemento ou o dinheiro para pagar a faculdade. Eu consumindo, sem ver opções, sem reclamar.       

Mal peguei o salgado mirrado, mais mirrado do que parecia pelo vidro, e a moça já corria tirando o avental. Eu era sua última cliente. Ela saiu sorrindo, suspirando aliviada. Eu fui ocupar um lugar do café quase lotado, lucrando horrores com as necessidades, às vezes nem tão necessárias, dos que passam por ali.


PS.: Eram curiosas as reações das pessoas ao ver o cardápio. Espanto, indignação e uma longa fila à espera de salgados, pão de queijo e cafezinhos.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

A caixa (Parte I)

A decisão foi encaixotar os sentimentos. Deixá-los empoeirados sob os dias já esquecidos.

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A caixa era pequena para o volume que pretendia carregar. Trazia consigo um laço mal feito e letras rápidas que não queriam dizer. “Para o tempo. Que se encarregue de levá-los até onde der para levá-los”. Ponto e só. Sem nome, endereço, a caixa foi deixada em uma praça movimentada, sem testemunhas nem álibis, quase imperceptível no vai e vem enlouquecido de pessoas.

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Já era quase noite quando avistei o objeto preto e retangular, esquecido em meu caminho diário de volta para casa. A curiosidade não me deixou passar despercebida. Apanhei a pequena caixa, como em um ato-reflexo. As palavras chamavam atenção pela velocidade com que aparentavam ter sido escritas. Não consegui deixa-la para trás. “Quem nunca quis abandonar um pouco de si mesmo e ser descoberto por outra pessoa? Ou ser esquecido para sempre?”.

Eram várias cartas. Sem remetentes ou datas. Talvez nunca enviadas, ou nunca respondidas. Cartas que caminhavam soltas sem as amarras que certamente fizeram delas agora abandonadas. E que se preparavam para renascer em uma nova história.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

A bordo - relatos de uma viajante em início de estrada (Parte I)


Eu morria de medo de avião. Uma sensação que aumentava só de me imaginar dentro de um lugar do qual não poderia sair quando quisesse. Que não poderia “puxar a cordinha” para que parasse no meu ponto de interesse. Aquilo me torturava, mesmo antes de sequer por os pés em um deles. Para mim era uma claustrofobia que não saberia lidar. Nem mesmo sei de onde surgiu esse pânico de lugares fechados. Sei que de uma hora para outra os elevadores tornaram-se os piores lugares.

A primeira vez que viajei de avião foi por conta de uma matéria. A companhia aérea que estreava aeronave convidou o jornal para conhecê-la através de um voo bate-volta Petrolina-Salvador-Petrolina. Eu me escalei, no impulso. Era uma boa oportunidade de driblar o medo, já que não iria poder demonstrá-lo tão intensamente. Foram dias de agonia até a hora da viagem. Pesadelos, suor frio, tinha certeza de que sofreria um infarto, que meu corpo não aguentaria a pressão nem a altitude (sim, eu sabia que o avião oferecia todas as condições para meu corpo não se decompor, que era bem mais fácil sofrer um acidente atravessando a rua na volta pra casa).


Quando me percebi estava sentada na janela, inquieta, olhando a pista de decolagem. E logo via a cidade se apequenando, o rio tornando-se um fio contornando as plantações verdinhas, a caatinga esturricada. Logo ultrapassava as nuvens, com o coração acelerado. Parece bobagem, mas percebi que a claustrofobia era pequena diante da metáfora que se desenhava diante de mim. Meu medo maior era de ganhar asas e ir para além de onde meus pés não conseguiriam me levar. Algo que, no fundo, eu sempre quis, mas não conseguia (consigo) lidar muito bem. Eu, que sempre fui sonhadora ao extremo, temia tirar os pés do chão.  

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Dia que vai


Dia de nuvens acinzentadas, de céu pesado apertando o coração. A chuva que caiu na madrugada ainda resistia empoçada nas ruas, fazendo brotar o mato desordenado, trazendo alívio a alguns.

Quem nunca perdeu para si mesmo? Quem nunca tropeçou em suas próprias fraquezas e hesitou em ir adiante? Ou acreditou demais e de repente percebeu que os maiores obstáculos deveriam ser driblados internamente antes de se aventurar a desafiar o mundo lá fora?

Naquele dia, ela entendeu que no seu mundo era tempestade, contrastando com o calor que mais tarde iluminaria a lua em raios, prenúncio de águas fartas. Naquele dia, ela viu que não adianta olhar de cima, quando não se consegue sequer entender o que está dentro.

O início de semana ainda vive dias anteriores, tenta desentender o que compreendeu equivocadamente. Cada passo o início de um caminho diferente ou rotas em círculo, paisagens que cansam pelo desencanto do que não é mais. 

terça-feira, 1 de abril de 2014

Voltando a caminhar o caminho...

Ocean Sprout / Vladimir Kush
“Você era muito surrealista”. Era. Sou. A frase foi de um amigo e mexeu comigo, despertou o “surreal” adormecido em meus inúmeros descaminhos que me tornou mais olhos para fora e pé no chão. Como é chato isso. Logo eu, diversos mundos em uma criatura que às vezes não quer se ser, milhões de histórias tecidas imaginariamente, madrugada adentro, a pé pelas ruas. Histórias que nunca conheceram a cor do papel e se perderam ao longo de estradas que não se imagina.

“Ainda sou. Só não pratico”, respondi de imediato. “A gente deixa coisas de lado que não deveria”. Deixa mesmo e realmente não deveria. É difícil admitir que sufocamos certas disposições, seja lá por quais motivos, muitos deles nem tão fortes assim. E que nos acovardamos diante de possibilidades. E nos acomodamos com os degraus já subidos sem ter coragem de olhar para cima e ver que a escada nem bem começou. Vivemos por demais o real e vamos deixando para lá o que é invisível aos olhos, mas perceptível ao inconsciente, não somos os detalhes, esquecemos as sensações. Deixamos de ouvir e lá se vão as abstrações, mãos dadas com as oportunidades ignoradas.  

Felizmente ainda é tempo de dar ouvidos a todo esse surrealismo.