sexta-feira, 25 de abril de 2014

A caixa (Parte II)

Há vidas que nascem poesia. E aquelas que nem estrofe encontram para se encaixar.

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Andei apressada, a caixa nas mãos latejando os pensamentos. A velha conhecida ruazinha de todo dia não parecia a mesma. Nunca percebera os matos que cresciam desordenadamente em sua encosta ou o fio solto do poste que pendia perigoso. As árvores grandes demais e cheias demais com sua agitação incomum pareciam querer me acompanhar, com toda sua inquietude tempestuosa. As pessoas passavam despercebidas do mundo que se construía ali, no mesmo lugar de sempre.

Mergulhei na vida de outra pessoa. Alguém que esperava uma resposta ou tentava dizer. Palavras que desejamos ouvir, mas nunca são ditas, que nos traem em nossa pressa pelo amanhã que não vem, porque não o compreendemos, porque não permitimos que ele chegue. Ali era silêncio, apesar das inúmeras páginas escritas. Era uma só voz, que terminou esquecida em um meio de rua qualquer.

A caixa trazia dezenas de papeis, ordenados não sei ainda se sob alguma lógica. Fragmentos de uma vida, costurada entre sentimentos que se esparramavam sem pudor sobre as folhas amarrotadas. Quem os teria derramado dessa forma?

“Foi, como costumam dizer, à primeira vista. Olhar compenetrado, ar de quem sabe o suficiente para não esnobar quem lhe cerca. Apenas primeiras impressões. Até então não entendia como coisas assim podiam acontecer. Como podia enxergar o outro sem nunca ao menos tê-lo visto antes. Assim de repente, sem qualquer precedente.

E lá estava, frente a frente a observar. Sorriso de quem se prepara para ir além. Sorriso fácil, sincero. Horas a observar cada trejeito. Pequenos movimentos, palavras. A voz entoando a melodia antiga, tão familiar. Quis estar ali para sempre, ao lado, mãos dadas, braço sobre os ombros cansados, em êxtase. Quis estar ali, mas se percebeu a voltar. A saudade antecipando o tempo.

Tentou compreender o que se passava, compreender os gestos bruscos, a cabeça baixa como a esperar. Mão impaciente a passear de um lado para o outro. Mãos inquietas tentando controlar o nervosismo. Olhava para o lado. Olhar de quem pergunta, de quem diz por que, sem esperar resposta. Fez do momento seu, porque o sabia seu”.

O trecho iniciava com mistério a história que se desenhava bela. Ou triste.  

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