sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Eu não quero tolerância

Eu sou nordestina. Não preciso ser tolerada por causa de minha origem. “Nordestino”. A palavra que carrega em si uma carga histórica de sentimentos muito difíceis de serem diluídos, de serem sequer compreendidos. Em qual outra região do Brasil sua população é definida assim? Por que quem nasce em São Paulo ou no Rio de Janeiro não é chamado de “sudestino”? A palavra sequer aparece como correta no vocabulário do Word.

Eu sou baiana, nascida em Salvador, juazeirense de coração, remansense de raiz. Apenas um pedacinho do Nordeste, vastidão de povos, culturas, riquezas. E, com certeza, não preciso ser tolerada por causa disso.

“Lá no Nordeste é assim que funciona. O povo entrega o título de eleitor e votam por eles”. Ouvi isso de um taxista no Rio de Janeiro, recentemente, sobre as eleições presidenciais que se aproximam. Perplexa. Uma afirmação que poderia ser encaixada em alguma conversa do século XIX. Incrédula. Existem pessoas que realmente pensam assim.

“É verdade. Eu vi no jornal”, garantia o senhor de meia idade, pesado de conceitos pré-fabricados, dos quais ele não fazia qualquer questão de rever ou de reconsiderar. Triste. De fato, ainda existem pessoas que pensam que estamos estacionados no tempo, encurralados em um grande feudo com senhores da terra, atrasando o desenvolvimento do país. Seria isso o Nordeste para alguns.

E continuou. “Conheci um cearense branco, até bem apessoado. Tão branco, nem parecia cearense...”. Era realmente inacreditável. O senhor falava com uma naturalidade que espantava. Palavras atiradas com a visível intenção de atingir os quatro “nordestinos” que seguiam viagem em seu táxi. “Você precisa conhecer o Nordeste”, dissemos. Precisa, sim. Muitas pessoas deveriam tirar o antolhos e conhecer melhor seu país, saber mais de si mesmo e deixar de tanta arrogância. Seríamos melhores assim.

Tolerância. Segundo o dicionário é o termo que define o grau de aceitação de determinado elemento que contraria a regra. Não ouvimos mais o que viria da metralhadora sentada em frente ao volante. Não precisávamos, não temos que aceitar tanta ignorância, não temos que ser tolerados em nosso próprio país, em qualquer lugar que seja de seu território.


A bordo - relatos de uma viajante em início de estrada (Parte III) - Eu, depois de mim



Havia me perdido de mim. Entre os tantos caminhos que nos são ofertados ao longo da jornada, por vezes escolhemos o que nos desconstrói. Não como se reinventar, mas como nadar contra a maré. Eu, destemida, audaciosa, segura de minhas convicções, vi os adjetivos serem levados por uma corrente que não consegui acompanhar. E fui então percebendo a minha falta de habilidade com a vida real.

Há cerca de dez anos, em uma auto-entrevista, tracei um perfil do que seria, ou do que imaginava ser. Relendo, ainda identifico muito do eu daquele tempo em mim hoje. “Quero tudo ao mesmo tempo e ao mesmo tempo não quero tudo, quero só o suficiente pra me fazer sentir bem. (…) Prezo pelo lado simples da vida porque este já é complicado demais”. Naquela época eu não tinha ideia desse “complicado” e de como na maioria das vezes tornamos tudo mais difícil por não sabermos lidar com nossos próprios sentimentos, por não saber compreendê-los ou transformá-los em ação.

Eu ainda não sei. Mas adquiri certa consciência do quanto isso é importante e do quanto sair de si mesma e da imutabilidade de se ser ajuda a saber. Viajei. Conhecer o que se vê apenas em publicações ou nas imagens retorcidas da televisão nos dá uma dimensão do que somos, do que desejamos ser. Sentir lugares diferentes, pessoas com pensamentos tão diversos, ritmos, sons, cheiros, paisagens que não estão presentes em nosso cotidiano nos faz ter uma visão mais ampla de nós mesmos. Nunca voltamos igual, por menos perceptível que seja.

Ainda tento sair da contra-corrente. Ainda tenho a sensação de que nado sem sair do lugar, mesmo sabendo que aos poucos estou retomando o meu caminho. Desta vez sem tanta euforia e sem tanta pressa de me definir em palavras, de me precisar em propriedades, tamanho e peso, como uma embalagem de um produto qualquer.