quinta-feira, 14 de maio de 2015

Sobre cartas e as palavras que ficam


Letras bonitas escritas com um zelo não mais visto em papéis que ficaram para contar histórias. O carinho em palavras ditas sem o pudor característico das relações de um tempo que se foi.

Há alguns anos descobri com emoção uma porção de cartas cuidadosamente guardadas. Meu avô e minha mãe, em correspondência através dos anos em que não vivi, falando amenidades, contando pormenores da vida que hoje, talvez, por nos habituarmos a não olhar tanto para os lados, por não enxergarmos tanto os detalhes, passariam despercebidos. 

Meu avô era de um pragmatismo admirável. Uma organização que, apesar de ter convivido pouco tempo com ele, nunca esqueci. E eis que ele guardou cada carta, as que ele enviava, copiadas ou datilografadas duas vezes, e as respostas de minha mãe. Sem saber, ou bem ciente de que com o gesto formava um memorial de valor inestimável (o que mais acredito), ele continuou a me contar histórias que se perderiam com a partida de ambos.

Assim fui conhecendo um pouco mais dos dois, pai e filha, avô e mãe, do que gostavam, do que falavam, do amor pela família, explícito nos caminhos ditados, nos conselhos, nas ações relatadas frequentemente e com tanto esmero. Dos silêncios que doíam, da vontade de estar perto, do pensamento que não se separava um instante.

Assim soube coisas corriqueiras, que hoje nem existem mais. Das viagens a vapor, da “vida monótona” para o homem de ideias avançadas demais para a Remanso das décadas de 1960-70. Das distâncias, das saudades, das palavras corridas pela pressa de mandar notícias pelo ônibus “que vai sair daqui a cinco minutos”. Das idas e vindas entre Remanso-Juazeiro-Salvador e das cartas que chegavam acompanhadas de bolachas, tecidos, linhas e sabão em pó. Novidades que demoravam a surgir na velha cidade afogada.


Era uma vida de comunicações difíceis, onde falar ao telefone era novidade para ser celebrada, em que toda toda a família se reunia para falar por rádio-amador de um cabo do Exército para ter notícias do irmão distante. Vida de novidades contadas pelas linhas econômicas dos telegramas, que traziam e levavam notícias boas e notícias más, num português caprichoso, cheio de precisões.

Eram momentos de preocupações pelas dificuldades impostas por um governo autoritário. “Fiquei ciente do que ocorre a respeito da área de interesse da segurança nacional. Eles são aparentemente fortes, enquanto os comandantes, que os combatem, são na realidade, muito fracos”. De preocupações pela construção da barragem de Sobradinho, que terminaria forçando a mudança de
sede de Remanso anos mais tarde, provocando debates que passaram longe da história oficial. “Estou remetendo estas cartas da Assembleia, sobre a rejeição do nome da cidade do Rosário. Ficará o mesmo nome de Remanso”.

Assim passei a admirar uma amizade expressa nas assinaturas: “de seu velho pai e amigo” ou “você é o pai melhor do mundo!”. A admirar a cumplicidade, o apoio, a confiança que um tinha no outro. “Você me faz falta de filha refúgio; falta que suas missivas atenuam”. Admirar o alto astral e a descontração da mulher que insistia em desejar, acima de qualquer coisa, a felicidade. “Que estejam como deixei: calmos e alegres. Evitem 'foles'”... Do desprendimento e despreocupação com o achar alheio. “Do juiz não se ouviu falar mais nada. Deixe-o de lado e mande-o para o inferno”.

Adentrei a madrugada a ler o primeiro bloco de cartas, que guardo como um tesouro particular e que tanto protelei para tomar conhecimento de seu conteúdo. Arrancaram-me sorrisos... e lágrimas. Ficou a satisfação em poder conhecê-los um pouco mais por eles mesmos, um pouco mais sobre mim mesma. Ficou o desejo de mais.

terça-feira, 14 de abril de 2015

O melhor lugar do mundo


Era só entrar pelo caminho de terra, em algum lugar no interior de Remanso, e seguir a estrada marrom de declives e pedregulhos. Era só ir abrindo as cancelas e decidindo instintivamente entre as bifurcações ou se guiar por aquele pé de mandacaru, um entre tantos, mas que se diferenciava sabe-se lá como. Era só passar por aquela árvore retorcida, aquela outra de galhos caídos e por aquela de folhas já secas, que ainda tentava resistir ao implacável sol. E também por um barco, estancado na aridez que se repetia cotidianamente, fazendo de ancoradouro o quintal da casa. Era o caminho das Larges, lugar até então perdido em minhas lembranças infantis.

Foto: Emerson Rocha

Não tinha mais os coqueiros da entrada. Nem o cheiro da água que ia adocicando a estrada. A água sumiu, pra lá depois de onde os olhos já nem alcançam mais e os coqueiros foram embora com ela. Restou o imenso cajueiro abraçando a casa que um dia pareceu enorme. E o senhor que já não se reconhece fora dali, aquele lugar no meio do nada, como dizem tantos. “O que é que eu vou fazer na cidade?”, ouvi meu tio, único irmão vivo de minha avó paterna, perguntar. Ele, 82 anos, morador solitário das Larges. “O que eu vou fazer na cidade?”, a pergunta ecoando, me cobrando explicações.

A vida dele é ali, lugar sem energia elétrica, sem telefone, sem internet. Bodes pastando extensivamente, galinhas de estimação. Raiar e por do sol. Mundo que se agiganta pela simplicidade, pelo passar arrastado do tempo sem relógio. O que fazer fora dali, naquela desordem que confunde, naquela bagunça que sufoca, num vai e vem desenfreado e tantas vezes sem destino? Ali onde bicho, homem, planta, terra, água se entendem e se respeitam, se unem contra as adversidades, se completam num ciclo hoje tão ameaçado.

O calor fazia desenhos no ar, enquanto eu caminhava mato adentro tentando entender. Meu tio, alheio a meus questionamentos, sorria soberano certo de que está no melhor lugar do mundo.  

terça-feira, 7 de abril de 2015

Recomeço

Eu tinha quinze anos quando me senti livre pela primeira vez. Era uma noite de outubro e lembro que fiquei horas no quarto, sozinha, a música alta eternizando o momento. Vinha de dias difíceis e aquilo soou como uma recompensa. Deixei a madrugada chegar lenta, tentando prender aquela sensação em mim, sem saber que seria impossível esquecê-la.

Somos responsáveis por nossas escolhas, pelos caminhos que temos que seguir. Naquele dia eu tinha consciência disso. Como hoje. Anos depois consigo reencontrar aquela mesma garota sonhadora que lutava contra tanto de si mesma para manter-se viva. Que lutava por tanto de si mesma para viver seu próprio caminho.

Coragem nunca foi uma palavra frequente em meu vocabulário. Até perceber que tinha deixado aquela garota morrer justamente por falta dela, a tal coragem. Viver é muito mais que cumprir protocolo, seguir a cartilha que se determinou sabe-se lá como e por quem. Eu não quero cumprir roteiro que nem sequer tive participação. Não vale a pena. 

Já há algum tempo buscava essa coragem para tirar de mim o que tanto me maltratava. Foram dias, como dizia minha avó, de uma "coisa ruim dentro de mim", que não conseguia fazer entender, que médico nenhum conseguia explicar. Coração acelerado, como se quisesse se libertar de mim. "Você está bem, é coisa de sua cabeça". Não, não é. Nada que te faça sentir mal é simplesmente "coisa de sua cabeça". É algo real e deve ser combatido, enfrentado, evitado.

Eu sempre fui muito os outros. O que vão pensar, o que vão dizer, o que vão achar. Mas a verdade é que, nesse período, apesar de todo o apoio e boa vontade de quem esperava aprovação, ninguém conseguiu despertar essa coragem. Ela dependia unicamente de mim, assim como as escolhas, as consequências. A "coisa ruim" era minha e ninguém jamais iria compreendê-la.

Voltei a sentir a garota tentando voltar a respirar. Espero não deixá-la ir embora novamente, que sempre esteja comigo me ensinando a ter coragem e a aprendendo a recomeçar. Não é fácil. Mas pior é acordar com vontade de chorar por ter se anulado diante de suas próprias fraquezas.

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Das memórias submersas


“Qual é a graça em ficar olhando para um monte de tijolo velho?” A pergunta saiu de repente de meu irmão mais novo e me assustou. Depois de quase sete anos eu retornava à velha Remanso, desnuda novamente pela seca do rio São Francisco. A baixa do lago de Sobradinho deixava mais uma vez à mostra os restos físicos da cidade alagada após a construção da hidroelétrica.

Havia menos casas em pé e vários sinais da presença humana recente, possibilitada pela seca prolongada. Plantação, gado pastando no que era para ser o curso do lago. Lixo, muito lixo, de garrafas e embalagens de comida a preservativos, espalhados sobre as paredes caídas, por entre os tijolos do que um dia foi um mercado. A rampa do antigo cais, ancoradouro dos vapores que movimentavam a vida local, agora era estacionamento de carros, cujos donos chegavam ali para curtir as barracas de bebidas que acompanharam o retrocesso das águas.

Uma pequena volta pelo lugar e as marcas de trator deixavam evidente que a cidade velha estava morrendo mais uma vez. Como se quisessem juntar todos os cacos em um amontoado de restos e deixar ali para que a água, quando vier de novo, se encarregue de levá-las para sempre. Era claro que a falta de interesse infelizmente não se limitava ao garoto que ignorava minhas explicações.

Fotos: Emerson Rocha
“Quem quer ver isso? Uma escada, grande coisa!”, dizia ele insensível ao se deparar com partes semierguidas de um casarão. Enquanto eu, pele arrepiada, olhos marejados, reconstruía um passado que não vivi, me emocionava com o recontar das histórias repetidas tantas vezes. De longe, observei meu pai a contemplar o rio, debruçado no que foi o ponto principal da cidade, ponto de encontro, de brincadeiras, de comércio, de brigas, de travessuras. Ele parava olhando o passado, sorrindo feito bobo, relembrando como se revivesse.

O sentimento que ficou foi de que o que se passou até que restassem apenas aqueles tijolos velhos vai ficando enterrado, esquecido juntamente com as ruínas. A romaria em busca das lembranças afogadas vai cessando com o tempo. Os filhos da nova Remanso já não parecem se reconhecer nas memórias submersas.